Espírito, corpo e cidade em The Ghost In The Shell

Iakima Delamare
4 min readMar 13, 2022

Iakima Delamare

O termo ciborgue nasce na década de 60 no contexto da exploração espacial quando buscavam criar um ser humano melhorado que conseguisse sobreviver no espaço. Manfred E. Clydes usou o termo quando discutiu a relação homem-máquina. Ele fala sobre “uma nova fronteira”, não meramente espacial mas, mais profundamente, o relacionamento entre o “espaço interior” e o “espaço exterior” — uma ponte… entre a mente e a matéria.

Em Ghost In The Shell (1995) a protagonista Motoko, é uma representante dessa nova classe de seres que estariam, tecnicamente, um passo à frente de nós. Durante os créditos iniciais vemos o que pode ser entendido como o nascimento de Motoko. Da água, assim como um humano, sai o ser que é em parte humano e em parte mecânico. Esse elemento tem um papel importante no filme e está presente em várias outras cenas. Ele simboliza, na minha opinião, o processo de renascimento espiritual de Motoko ao longo da história.

A próxima cena onde o elemento aparece em abundância (e também minha cena favorita) é a que Motoko luta com o homem hackeado em uma espécie de canal. Quando o homem cai podemos ver o reflexo de Motoko na água. É apenas uma sombra indefinida mas está lá. Esse reflexo surge como uma ideia, uma dúvida implantada em sua mente. Um projeto de uma outra identidade possível. Ao questionar o homem sobre seu passado ele experiencia a morte da identidade que ele acreditava ter e o nascimento de uma nova.

Enquanto o homem é interrogado sobre a veracidade de suas memórias a imagem de Motoko aparece refletida no vidro. Agora o reflexo é tão nítido quanto a própria Motoko. Ao questionar o homem ela também passa a se questionar e a questionar sua identidade e, devido ao enquadramento — pressionada contra o vidro em um plano fechado — percebemos como se sente aprisionada ou limitada por ela. Em seguida Motoko mergulha no mar em uma cena que remete à cena de seu “nascimento”. E ela novamente aparece dividida em um reflexo. Até que ela se aproxima e se funde à ele. Essa ideia é confirmada quando, ela emerge e diz que quando nada no mar se imagina se tornando uma outra pessoa e admite que se sente confinada.

O padrão narrativo do filme — cortes típicos de um filme de ação — é interrompido por cenas da cidade de Hong Kong e podemos entender imediatamente à que confinamento ela se refere. Não só por ser uma cidade super populosa mas a Hong Kong distópica de GITS é também uma cidade híbrida. O produto do que um dia foi uma colônia ocidental em um país oriental. Está entre um e outro, entre o novo e o velho. Motoko mora em Hong Kong e portanto é vítima de um não-pertencimento ou um pertencimento múltiplo. Assim como não é nem completamente humana nem completamente mecânica.

Essa relação de Motoko com a cidade é exemplificada quando vemos Motoko usar seu manto de camuflagem e a sua imagem se funde com a da cidade. Ela literalmente se torna a cidade. Ou quando a vemos pela primeira vez após os créditos e ela acorda sozinha em um apartamento mergulhado em escuridão. Ela então abre a cortina e podemos ver a cidade ao fundo. Motoko é enquadrada pela própria janela, refletindo não só a influência da cidade na constituição da sua identidade (baseado na ausência de qualquer outro elemento) mas o seu sentimento de confinamento.

Motoko está agora no seu próprio processo de morte e renascimento. Ela se pergunta sobre sua origem e questiona a existência de sua parte humana. Nesse momento ela expõe um dos principais questionamentos do filme: se uma máquina consegue simular a experiência humana, qual o sentido de se ser humano? Ou, a experiência humana simulada, se experienciada como real, seria menos verídica que a experiência humana original, simplesmente por ser uma simulação? Motoko incorpora todas essas questões.

O processo de renascimento de Motoko se conclui quando, ao exceder seus limites físicos, ela tem seu corpo dilacerado e se vê em um momento de vulnerabilidade humana. Ela cai novamente em uma poça d’água. E quando acorda tem um novo corpo — infantil, ideal para alguém que acabou de nascer — e um novo fantasma (ou espírito, como eu prefiro chamar). Em GITS o “relacionamento entre o ‘espaço interior’ e o ‘espaço exterior’ se dá, então, pelo relacionamento de Motoko com o seu corpo (sua casca) e sua cidade, e as limitações que ambos representam para a personagem.

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