Para Além do Muro Rosa

Iakima Delamare
9 min readNov 19, 2018

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Entrevista com Fabiana Leite, diretora de Lírios Não Nascem da Lei

Por Anna Clara Murça, Iakima Delamare, Isabela Braga, Júlia Duarte e Larissa Brenda

Imagem: Cardes Amâncio

“As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.”

Do poema de Drummond para a tela de Lírios a mensagem é clara e incômoda: as leis não bastam. A barbárie do sistema carcerário brasileiro não é novidade mas ele se mostra ainda mais insuficiente com quem há de mais vulnerável na população: gestantes, mães e seus filhos. “Mudou-se a rua da infância”, diz Drummond, e a imagem de crianças brincando no pátio de um presídio é difícil de engolir, mesmo que a parede rosa ao fundo tente, sem sucesso, suavizá-la.

“Nos porões da família/orquídeas e opções/de compra e desquite./A gravidez elétrica/já não traz delíquios./Crianças alérgicas/trocam-se; reformam-se./Há uma implacável/guerra às baratas./Contam-se histórias/por correspondência./A mesa reúne/um copo, uma faca,/e a cama devora/tua solidão.”[…]

“Certas histórias não se perderam./Conheço bem esta casa,/pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,/a sala grande conduz a quartos terríveis,[…]

conduz às celas fechadas, que contêm:/papéis?/crimes?/moedas?”

O filme une-se à uma — quase — categoria de “filmes feitos por mulheres sobre mulheres presas”, brinca a crítica Carla Maia em referência à outros dois filmes anteriores à Lírios sobre o mesmo tema. Mas para Carla, a feliz particularidade de Lírios reside no esforço feito pela diretora Fabiana Leite em não usar a câmera apenas como um instrumento de observação do outro, e sim, para fazer companhia às mulheres que retrata.

Imagem: Cardes Amâncio

A problemática nessa abordagem reside na relação entre equipe e personagens. De um lado, mulheres livres para ir e vir que se propõe a adentrar o universo do encarceramento das que a esperam pacientemente do outro lado. Fabiana domina a arte de se colocar à escuta, sem omitir o descompasso daquela relação que poderia ter sido vendida como uma amizade espontânea entre equipe e gestante, apenas. Por mais que a amizade exista, de fato, como Fabiana nos conta, muito existe entre os dois mundos que se cruzam para realização desse filme. Essa quase dança entre corpos de diferentes mundos e afetos resulta em um documentário igualmente tocante e incômodo.

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,

ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,

moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,

pessoas e coisas enigmáticas, contai;

[…]

Tudo tão difícil depois que vos calastes…

E muitos de vós nunca se abriram.

Ó mulheres, encarceradas por múltiplas celas, contai.

das prisões visíveis e das invisíveis.

Fabiana quer ouvi-las.

E nós ouvimos Fabiana:

Fabiana Leite, diretora de “Lírios”

Qual era sua pretensão ao propor criar um projeto como Lírios e o que você pretendia trazer de diferente para as discussões apresentadas nele?

Me incomoda muito como outros filmes sobre o sistema prisional, são filmes frios, que dá pra ver que a equipe entrou lá, filmou por duas semanas e depois foi embora. Quando eu me propus a fazer o documentário, eu já sabia que queria ficar pelo menos dois anos com elas. Eu também não quis lidar com a questão de qual foi o delito, porque isso é o que a mídia tradicional já faz. Então eu queria muito mais abordar a trajetória, história de vida, os dilemas dessa condição de ser mulher encarcerada.

O que comove no filme, é a proximidade e intimidade com as mães. Elas conversam com você como se fossem amigas. Como foi esse processo de aproximação e conexão?

Eu tenho formação em direito e trabalhei com segurança pública muito tempo, então eu sabia que eu só ia conseguiria os resultados que eu queria, se eu acompanhasse uma trajetória longa, porque nenhuma mulher encarcerada vai se abrir assim. Elas estão lá tão carentes que só foi necessário que chegássemos com um mínimo de sensibilidade. Elas perceberam que a nossa “pegada” era outra, não era um processo jornalístico frio e elas viam que eu voltava. Então isso ia gerando uma relação. Inclusive elas falavam “Nossa Fabi, você demorou a voltar”. A Cacá, que fez a crítica do fórum.doc, aborda isso no texto, falando que a nossa proximidade transparece no filme, quando elas me chamam pelo nome. Quando você fixa o nome de uma pessoa é por que você gerou no mínimo identificação e cumplicidade, ainda mais para elas que estão encarceradas. Então, tem essa necessidade delas de afeto, pois não recebem muitas visitas, mas elas também perceberem o comprometimento (da equipe) e uma humanidade no processo, que não era frio ou desrespeitoso. E que era conduzido por mulheres, o Cardes é quase uma moça né?! (Risos). Ele é muito silencioso e delicado. Éramos eu, Lê e Dani, as meninas são maravilhosas, então realmente nós construímos uma relação de afeto com elas que permitiu seguir.

Mesmo com essa relação de confiança uma equipe de filmagem pode ser intimidadora. Você acha que os equipamentos ou a própria equipe as inibiu de alguma maneira?

O equipamento que a gente usa também determina a relação. Se nós chegássemos com um equipamento grande, cheio de Boom (microfones) iria criar um distanciamento. Por isso, geralmente num processo documental, você vai com um equipamento menor, uma equipe reduzida, para você ter a liberdade de transitar e não gerar um desconforto. Mesmo assim, aquela cena com elas deitadas eu só consegui fazer quando eu estava sozinha com elas, porque te dá mais liberdade, você pode chegar perto. Eu estava sentada do lado delas com a câmera próxima, na mão mesmo.

Durante a pré-produção você já tinha em mente coisas que queria filmar ou era orgânico?

Imagem: Fabiana Leite

Tinham coisas que eu queria desde o início. Como eu estudo isso há muito tempo, eu sabia que aqui em Minas é obrigatória a presença de um militar dentro da sala de parto. Então isso chocou um pouco. Mesmo sendo guardas mulheres, ainda são duas. Há casos no Brasil, em que as mulheres ainda têm que dar a luz algemadas. Então eu corri atrás para mostrar certas coisas. Eu queria muito ter filmado o dia da saída de uma delas, mas não coincidiu. Queria trazer a questão da separação do filho e o dia da entrega. Nem tudo o que eu pretendia deu pra ser filmado, mas consegui mostrar um pouco dessa realidade.

Mas além de todas essas questões, também tinha dia que eu ia pra lá sem propósito, apenas para ficar com elas. Porque aí eu precisava criar essa intimidade também e ficar no cotidiano, filmando de forma livre.

Você se deparou lá dentro com diversas histórias, inclusive sobre abuso e violência que as meninas sofreram. Como você conseguiu abordar assuntos tão sensíveis? Como se deu o processo de escolha sobre o que manter no corte final, para que as meninas não fossem expostas mais do que o necessário?

Imagem: Fabiana Leite

Sobre a história de abuso, ela só se sentiu a vontade de falar isso por que eu não forcei. Eu deixei até um plano sequência para mostrar que eu não sabia [o que ela iria falar]. Ela fala: “eu tenho que falar do estupro, né?”, nesse momento eu não interfiro e nem peço nada. Eu já tinha sentido que era um problema sexual, mas se ela não quisesse verbalizar eu não iria forçar, não era meu objetivo ali. Ela se sentiu segura por que ela percebeu que nós não estávamos explorando a história dela. A gente estava numa relação gratuita e qualquer entrega dela, que ela quisesse dar, era o que estávamos dispostos a receber. Foi assim que construímos as relações. É muito difícil, passamos por esse dilema na montagem, em que a gente ia tentando perceber o que era importante para a história delas e o que só reforçava os estereótipos. E isso foi conduzindo o percurso do filme.

E como ficou a relação de vocês depois do filme e como conseguiram manter esse contato? No final do filme vemos que vocês visitam uma das meninas em uma casa de apoio.

A Daiane, que foi pra essa casa de apoio com os filhos, é uma que eu perdi o contato totalmente, mas as outras eu continuo em contato. A Marcela esteve até em uma exibição com a mãe o filho, que já está grandinho. E é engraçado que eu e Marcela, nos comunicamos por WhatsApp até hoje. Eu lembro que, na época de edição do filme, ela me mandava mensagens dizendo: “Fabiana, olha o tamanho do meu filho e esse filme seu ainda não ficou pronto?’’. Pra você ver, fazer filme é igual fazer filho: demora pelo menos 9 meses. (risos).

A Daiane depois eu fiquei sabendo que ela entregou o filho mais velho para adoção. A gente já sentia uma certa rejeição e essa é uma outra consequência do aprisionamento dessas mulheres. Isso acontece com muitas delas: os filhos deixam de reconhecer, perdem o laço. Das irmãs, a mais nova eu também não acompanhei, mas a mais velha já está em liberdade. Ela teve um outro filho e está trabalhando com limpeza urbana igual à irmã.

Você poderia falar sobre esse momento agora, pós filme. O que você achou do resultado final e das relações que você construiu com as meninas?

Eu estou muito feliz com o resultado do filme. A circulação de filmes independentes é muito difícil no Brasil. Acho que hoje, nós temos um processo de amadurecimento de cinema feito por mulheres. Como eu sou ativista nesse campo, vejo que estamos conseguindo construir espaços que antes não existiam e isso tem dado a possibilidade dos nossos trabalhos aparecerem, por causa de um processo de militância nosso. Agora a grande felicidade é ele estar entrando em festivais importantes, como o Festival de Tiradentes, São Paulo, o Forum.doc, e talvez tenha até uma possibilidade maior de distribuição, que eu não esperava. Essa falta de expectativa não era porque eu não acreditava no filme, mas eu tenho consciência da dificuldade de se construir uma trajetória de circulação de cinema no Brasil. De qualquer forma, o objetivo não é as salas de cinema, o que me motiva é o cinema político e autoral.

Imagem: Cardes Amâncio

O processo árduo e longo de produção — conseguir liberação para as visitas, passar por revistas e conseguir acompanhar a trajetória integral das personagens — resultou em Lírios Não Nascem da Lei um documentário que foge da função estritamente informativa e se aproxima, sem medo, de quem está do outro lado da câmera, tomando a forma de um relato fortemente real que, justamente pelo caráter factual, causa incômodo e provoca a reflexão em quem o assiste.

Por trás das câmeras, houve um processo gradual e franco de aproximação com as personagens, fator significativamente responsável por tornar peça final tão autêntica. Depois de familiarizadas com as câmeras e quem as comandava, as mulheres se sentiram naturalmente confortáveis em contar suas experiências tanto dentro quanto fora da prisão. Saber mais sobre histórias tão diferentes das habituais, ouvindo de quem as de fato viveu, aproximou e estreitou a relação personagem/telespectador. Ainda assim, por mais incomuns que fossem, as experiências se mostram parte de vidas tão iguais quanto às demais, pessoas tão comuns quanto a maioria, quebrando a forte barreira que muitas vezes é construída entre pessoas que estão dentro e fora da prisão.

Lírios é um convite à ultrapassar as grades do sistema prisional brasileiro e questionar não apenas a funcionalidade e objetivos de um encarceramento, mas também sobre a figura feminina inserida nesse meio. “Quais são as questões que ser mulher traz ao mundo?’’, pergunta Carla Maia. Em Lírios encontramos algumas respostas.

Esta reportagem foi produzida na disciplina Projetos B1–2018/3 do curso de Comunicação Social/Jornalismo da UFMG.

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